De doador para super-herói

De doador para super-herói

Você sabe a importância que a medula óssea tem para a saúde? Sabe que um transplante dessa parte tão fundamental do nosso corpo pode salvar vidas? Para celebrar a Semana da Mobilização Nacional para Doação de Medula Óssea, que acontece entre os dias 14 a 21 de dezembro, e mostrar a relevância do tema, entrevistamos o Dr. Mair Pedro de Souza, médico responsável pelo serviço de transplante de medula óssea do Hospital Amaral Carvalho, maior centro de transplantes de medula óssea da América Latina. Confira e veja como muitos de nós podemos ser um super-herói na vida de outra pessoa. 

Oncoprod: o que é medula óssea?
Dr. Mair: a medula óssea é uma estrutura que fica localizada dentro do interior de todos os ossos e é responsável pela fabricação do sangue. À medida que a gente cresce, alguns ossos deixam de produzir sangue e outros não, mas é essencial saber que se não houver nenhum problema de saúde, o organismo consegue fabricar o sangue de maneira contínua por várias décadas.

O: o que é transplante de medula óssea e para quais casos esse procedimento é necessário?
Dr.M: realizamos esse tipo de transplante por alguns motivos. O primeiro deles é quando a medula óssea deixa de funcionar adequadamente, ou seja, se a medula paralisar, o paciente terá dificuldade em manter o sangue na circulação e ficará dependente de transfusões. Assim, essa indicação é para  substituir a medula em falência.

O segundo cenário é para destruir uma doença que se alojou na medula óssea como, por exemplo, a leucemia. Usamos estratégias medicamentosas, mas o transplante vem para consolidar essa destruição, colocando no indivíduo afetado uma medula de um doador saudável.

E uma terceira alternativa é o que chamamos de transplante autólogo. Esse caso é indicado para pessoas que precisam de uma dose muito alta de quimioterapia e/ou radioterapia para tratar doenças malignas, o que acaba afetando também a medula. Dessa forma, coletamos a medula óssea do paciente, congelamos em condições viáveis e, após o tratamento, devolvemos a própria medula.

É importante que a população saiba que há cerca de 10 anos houve uma grande mudança no transplante de medula óssea. A gente sempre trabalhou com a ideia de que o procedimento ideal teria que ser feito com dois indivíduos compatíveis, sejam irmãos ou encontrados no banco. Mas, em algumas décadas, já conseguimos transplantar duas pessoas da mesma família com incompatibilidades. Então, saímos de uma situação de que muita gente não tinha doador e hoje temos uma outra alternativa que é buscar entre os meios irmãos, pais e até primos com 50% de compatibilidade. 

A recomendação mais aceita pelos diferentes centros é a seguinte: buscamos um doador na família, entre os irmãos, não encontrando cadastramos no registro de doadores e receptores de medula óssea e inicia-se a busca internacional. Se for uma condição de urgência, já começamos a pensar na possibilidade de usar um irmão ou pais parcialmente compatíveis. Se tiver demora no encontro de um doador no banco, trabalhamos cada vez mais com a ideia de usar a pessoa parcialmente compatível. 

O: como funciona o transplante de medula óssea tanto para o doador quanto para o paciente?
Dr.M: conceitualmente o transplante de medula óssea é um transplante de células-tronco, células que possuem uma capacidade fabulosa de dar origem a diferentes outras para manter durante toda nossa vida um pool de células responsáveis por assegurar a produção e qualidade do nosso sangue. 

Para obter as células-tronco de um doador saudável, o procedimento mais convencional e antigo é submetê-lo a uma sedação e com uma agulha puncionar o quadril, nos ossos da bacia, para tirar o volume necessário de medula óssea que contêm as células-tronco que tanto precisamos. Essa é a forma convencional de doação cirúrgica. 

Porém, já se descobriu que alguns medicamentos são capazes de fazer com que as células-tronco que estão dentro da medula sair para circulação. Portanto, o doador pode receber doses dessas medicações e, posteriormente, por meio de uma máquina (parecida com a de diálise), conseguimos separar, coletando somente as células-tronco que nos interessa. 

Além disso, também podemos obter as células-tronco do cordão umbilical, coletando no momento do parto. Vale lembrar que a escolha do método é soberana do doador. A equipe médica envolvida no processo passa todas as orientações, mas é o indivíduo que decide de que maneira quer doar. 

Já para o receptor funciona da seguinte forma: ele precisa ter sua medula e sistema imunológico aniquilados para receber uma nova sem que haja uma interface negativa de rejeição, é como se fizéssemos um reset do sistema imune.  

Por que isso? Ao receber uma medula do doador, o paciente ganha a fabricação de sangue novamente, mas em contrapartida recebe junto um novo sistema imune. Porém, esse sistema pode não reconhecer os seus órgãos e ocasionar o que chamamos de doença do enxerto contra o hospedeiro.

Essa patologia é uma forma de rejeição diferente do que vemos em transplantes de órgãos sólidos. Se eu recebo um rim de um doador, é mais provável que eu rejeite se tiver alguma incompatibilidade. Mas, se eu recebo uma medula de um doador, o mais viável é que essa medula, uma vez no meu corpo, me rejeite. É quase que um processo inverso de rejeição.

Com o paciente pronto, o transplante é feito, normalmente, por um cateter em que colocamos células obtidas do meu doador como se fosse uma transfusão de sangue. 

Após o procedimento, o receptor precisa ficar em constante observação, pois a produção de sangue não se inicia logo após o transplante, ou seja, ele está sem medula e continuará sem por pelo menos de duas a três semanas. A pega ou enxertia acontece entre o 15º e 21º dia depois do transplante e aí sim o indivíduo terá a medula fabricando sangue novamente e iniciaremos todo um processo de reconstrução do sangue e do novo sistema imunológico, além de ficar de olho na doença do enxerto contra o hospedeiro e em outras patologias infecciosas. 

Essa vigília é feita até o momento que ele possa ter sua estratégia de revacinação. Por conta do novo sistema imunológico, o receptor precisará tomar todas as vacinas como se fosse um bebê. Uma vez vacinado, terá alta para voltar à vida normal.

O: qualquer pessoa pode ser um doador voluntário de medula? Quais são os pré-requisitos e impeditivos?
Dr.M: na verdade, é muito parecido com o serviço de doação de sangue, as exigências são as mesmas, o doador precisa estar em boas condições de saúde. Entretanto, é fundamental saber que no primeiro momento, a pessoa doará somente informações. 

Ao ir até um banco, será feita uma entrevista rápida e, depois, uma coleta de amostra de sangue para análise do conjunto de marcadores biológicos, que são chamados de gene de compatibilidade humana. Posteriormente, o indivíduo será cadastrado no sistema que irá encontrar o doador compatível com determinado paciente quando for o caso. Esse programa busca doadores não só no Brasil, mas em todo mundo, é uma grande rede internacional.

Uma vez encontrado o doador, realiza-se uma entrevista definitiva para saber o que aconteceu com a sua saúde nos últimos tempos e se está disponível socialmente para doar. Em caso positivo, é feita uma bateria de exames e o indivíduo faz a doação por um dos métodos que mencionei acima. 

Porém, é muito importante ressaltar que o doador mantenha seus dados nos bancos sempre atualizados, pois é por meio deles que chamaremos quando um paciente precisar de uma doação. Ao mudar de endereço, telefone, por exemplo, é preciso sempre comunicar. 

O: qual a importância da Semana da Mobilização Nacional para Doação de Medula Óssea?
Dr.M: é muito legal ver o tamanho da emoção e da energia que a pessoa ganha depois da doação. Ela chega até o hospital preocupada e tensa, mas depois, geralmente, sai como um super-herói, sabendo que contribuiu para salvar vidas. É algo que transforma qualquer ser humano em um indivíduo melhor, é bonito de ver. Passado um ano, é possível agendar um encontro entre os doadores, o que é fantástico para o receptor ao conhecer alguém que o ajudou anonimamente. É esse tipo de situação que precisamos mostrar para que as pessoas se inscrevam nos bancos. 

Além disso, quero deixar outras mensagens: a primeira é desmistificar a doação, você não irá doar a medula logo no primeiro momento, irá se cadastrar e doar uma amostra de sangue. Nem todos se tornam doadores, têm pessoas que ficam anos no banco e não são chamadas. 

Segundo é o tamanho da importância desse gesto, é diferente de doar um rim e ficar sem, por exemplo. Ao sair da anestesia, após o procedimento, a medula do doador já começa a recuperar as funções rapidamente e, em alguns dias, o indivíduo volta à vida normal sem nenhuma preocupação maior. 

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